Roger Waters nasceu em setembro de 1943. Seu pai, um oficial das Forças Armadas Britânicas, morreu na batalha de Anzio, na Itália, quando Waters tinha 5 meses. Sua família, guiada por uma mãe excessivamente protetora, se mudou para Cambridge, onde o menino conheceu Syd Barret na escola. O amor pelo blues levou ambos a montarem uma banda com os amigos Richard Wright e Nick Mason. Em 1966, a banda passou a fazer longos improvisos, baseados em blues e jazz, iluminados pelas projeções de um professor-pardal. Aos poucos, o burburinho levou o Pink Floyd a assinar seu primeiro contrato. O sucesso inicial dos primeiros compactos levaram ao aclamado “The Piper At The Gates of Dawn”. Lançado em 1967, mesmo ano de “Sgt Pepper´s”, dos Beatles, foi muito mais um sucesso de crítica que de público. Barret, cada vez mais perturbado pelo uso de drogas, teve, provavelmente, agravados problemas mentais pré-existentes e sucumbiu à doença mental, o que o levou a ser expulso da banda pelos melhores amigos e ao posterior ostracismo. Nesse meio tempo, Waters casou-se com a namorada da faculdade, uma mulher mais velha e dominadora (a substituta perfeita de sua mãe) de quem separou-se no auge da fama.
Bem, não é tão comum, mas muita gente pode ter ficado órfão de pai ou mãe, ter perdido o melhor amigo nos melhores anos da vida e ter tido um companheiro(a) castrador. Uma ou duas coisas ao mesmo tempo, talvez mais, talvez menos. Poucos, entretanto, com tanta simplicidade, podem transformar sua vida em uma obra universal. Este é o maior legado de Roger Waters. E se “The Dark Side Of The Moon”, obra coletiva, é o ápice do Pink Floyd enquanto grupo, “The Wall” é o ápice da obra de Roger Waters enquanto músico e ser humano.
E não foi menos que o máximo que as cerca de 60/70 mil pessoas que lotaram o Morumbi receberam ontem na primeira parada da turnê The Wall em São Paulo.
The Wall deixou de ser a história de Waters e tornou-se um hino do ser humano contra o abuso de autoridade, a maldade, a agressão gratuita, o abuso moral, a violência, as formas de dominação pelo ódio, a idiotia coletiva causada seja por ditadores quanto cretinos sem talento que aspiram à fama, fatores que nos levam, muitas vezes subconscientemente, a erguer muros altíssimos e intransponíveis em torno de nós a título de proteção, que nos impedem de viver plenamente nossas vidas e a realizar plenamente nossos desejos. Enfim, The Wall é a história de todos nós. E o menino tímido de Cambridge que era humilhado por colegas e professores na escola, pode enfim dar o troco: criou uma obra universal majestosa.
Não tenho dúvida em dizer, mesmo sendo fã de Beatles, The Who e U2, que The Wall é o maior álbum conceitual já gravado na história. Essa afirmação agora é categórica, depois de vê-lo na forma em que foi concebido: o grande espetáculo de som e imagem que é _a ópera rock com começo, meio e fim. Em 2079, quando completar 100 anos, The Wall certamente continuará sendo encenado. Talvez, as pessoas não saberão mais quem foi o Pink Floyd, ou sequer entenderão que para se fazer música era preciso que pelo menos uns três rapazes se juntassem para fazer um som, mas elas entenderão a obra sobre o isolamento a que muitos de nós estamos condenados.
Em sua versão 2010-2012, The Wall, o meio, ganha uma série de novas mensagens, todas universais. Estão no show a crítica à guerra, mas também ao consumismo desenfreado e ao desejo de ter, muito mais forte que o desejo de ser, que anula as pessoas enquanto indivíduos. A 2ª Guerra Mundial está longe para uma parcela do público de hoje, mas quem não se emocionou, ainda que com imagens manjadas, ao ver as crianças de uma escola pública americana recebendo os pais de volta do front em “Vera/Bring The Boys Bakc Home”? Outros temas, como o fim do amor, o abandono e a solidão, e o apelo por contato, também estão presentes, especialmente em “Hey You” e “Nobody Home”.
Trazido de volta de seu torpor depressivo-drogado, o astro Floyd é reerguido com uma agulhadinha básica em “Comfortably Numb” e, agora sem dor, se recompõe na forma do ditador e sua perturbada relação com a plateia no bis de “In The Flesh”, culminada na opressão que se segue à riff-raff que “ousou” ir ao estádio, presentes no riff genial de David Gilmour, co-autor da perturbadora “Run Like Hell”.
Julgado por seus crimes de não-relacionamento e “por ter mostrado sentimentos de quase-natureza-humana”, humilhado novamente pelo professor, pela mãe e pela ex-mulher num julgamento soturno por um juiz obtuso e de veredicto já pronto, Floyd, apesar disso, é sensatamente condenado, em “The Trial” a derrubar o muro e a viver em sociedade.
Portanto, o show não teve nada de piegas em seu ponto mais emocionante, o de ter sido dedicado por Roger Waters ao brasileiro Jean Charles de Menezes (morto em 2005 pela polícia britânica, numa lance horroroso de incompetência e brutalidade, confundido pela polícia com um terrorista) e à luta de sua família por Verdade e Justiça.
Jean foi vítima de terrorismo de Estado, aquele que assume o ódio e medo coletivos infligidos pelo Terror, ou criado nos gabinetes dos governantes, para reprimir a massa e mantê-la no cabresto. A morte de Jean expôs terrivelmente os métodos de segurança internos britânicos, os mesmos que foram incompetentes para impedir com inteligência os protestos dos estudantes e contra a violência policial de 2010-2011, combinados pelo BBM (os sistema de mensagens fechado da rede BlackBerry), ou para desativar a rede de escutas ilegais, com a conivência da polícia, para gerar manchetes para o jornalzinho popularesco do multimilionário Rupert Murdoch.
Não esquecer, para poder lembrar e para que não se repita, torna-se então o novo lema de The Wall. No intervalo do show, vítimas de conflitos e injustiças pelo mundo são lembradas com suas fotos no muro. Em “Waiting For The Worms”, os jornalistas “confundidos” com insurgentes, mortos no Iraque, também são lembrados.
Curiosamente, o show de Waters aconteceu em São Paulo no dia 1º de abril, 48 anos depois do golpe militar que mudou para sempre a face do Brasil. No auge dessa ditadura, um cidadão hispano-venezuelano, Miguel Sabat Nuet, viajava pela América Latina em busca de familiares distantes que poderiam ajudá-lo a receber uma herança complicada. Triste pela perda da mulher e longe dos filhos, anotava textos meio filosóficos num caderninho e portava uma valise. Na estação Barra Funda, ele se confundiu de trem e desceu com a condução em movimento. Foi preso e nunca mais visto. "Suicidado" nos portões da Ditadura, foi enterrado no cemitério de Vila Formosa. Sua família jamais foi informada. Familiares de presos políticos contaram a história de Nuet ao Ministério Público Federal. Seus restos mortais, exumados, a pedido do MPF, foram identificados em 2008, e após três anos de burocracia no governo federal, foram enfim entregues à sua família ano passado com um pedido de desculpas em nome de nosso país. Detalhe: Nuet foi morto em 1973.
Assim como as cinzas de Nuet levaram 28 anos para serem entregues à família, há ainda milhares de outras histórias que requerem esclarecimentos. Derrubar o muro da vergonha que esconde essas informações e que protege os carniceiros que a mando de um regime mataram, torturaram, oprimiram e censuraram músicas e filmes (!) é essencial para que o Brasil saiba que país é. Mais uma vez a mensagem da música une e traz a inquietação necessária, unindo a busca por Verdade e Justiça à eternidade de The Wall.
P.S.: A pedido, mas com minha inteira concordância, este post faz parte da quinta blogagem coletiva #desarquivandoBR, que se realiza de 28/3 a 02/4
segunda-feira, 2 de abril de 2012
Assinar:
Postagens (Atom)